Rui Coelho

 “Eis que tudo se renova”

Olá eu sou o Rui Coelho, tenho 54 anos, sou casado com a Carla, pai da Ana e do Daniel e é um privilégio partilhar um pouco da minha história e da passagem pelo Desafio Jovem, bem, e na verdade desde aí já se passaram 28 anos.

Sou filho de um casal proveniente da Beira Baixa. Ele, marinheiro de profissão e ela uma lutadora apta para todas as batalhas da vida, desdobrando-se no cuidado dos filhos e da casa e a trabalhar como costureira para fora, para contribuir para o orçamento familiar, enquanto o meu pai andou destacado anos a fio nas antigas colónias portuguesas.

A minha infância foi relativamente normal apesar de alguns processos de adaptação a novos lugares devido aos destacamentos do meu pai. Por exemplo, tinha eu 9 anos estava na ilha do Porto Santo quando se deu o 25 de abril, essa data marcante, tanto para o nosso país, como para todos nós enquanto povo. As profundas mudanças que isso provocou socialmente com a integração e adaptação dos chamados “retornados”. Pessoas muitas delas marcadas por todo o processo de desenraizamento, forçadas a abandonar casas, bens pessoais e muitas vezes família.

De volta à margem sul fui desenvolvendo a minha adolescência neste ambiente, estudei no Miratejo onde foram construídas à pressa torres pré-fabricadas para acolher muitas dessas famílias. O cheiro a “erva“ tornou-se familiar nos meus tempos de liceu apesar de ainda não ter experimentado.

A minha mãe, confrontada com a novidade das várias religiões em que todos afirmavam ser defensores do Deus verdadeiro e apesar de se considerar católica, foi perguntar ao padre onde estava a verdade, ao que ele respondeu: -“Leia a bíblia, aí está a verdade!” Lembro-me desde a infância de acompanhar a minha mãe nas idas ao culto. Participei até em algumas atividades de jovens, frequentei os acampamentos da União Bíblica no Carrascal em Sintra e tudo isso foi, para mim, um travão. Mas a determinada altura a “sede” da vida, o ter arranjado um trabalho ao fim de semana, foi um pretexto para me ir afastando da igreja. Era muito senhor de mim próprio já conseguia comprar as calças de marca. Fui estudar para Almada quando entrei para o 10º ano, comecei a fumar os primeiros charros e a beber uns copos com a malta. Foram tempos de irreverência e rebeldia, mas, a meu ver, estava tudo controlado. Chumbei a várias disciplinas, fui para o ano seguinte certo que no final iria ser capaz de recuperar, no final do 11º ano tinha as disciplinas mais difíceis por fazer e eu sem vontade de estudar. Vou trabalhar depois logo resolvo isto, pensei eu. Tinha 16 anos na altura ainda tentei seguir as pisadas do velhote e entrar na marinha como voluntário, mas fui eliminado, as análises revelaram os meus consumos. Depois pensei emigrar, tinha família na Suíça, mas acabei por não ir e continuei com a minha vidinha. Trabalhava para o meu padrinho, turno da tarde, o horário perfeito para curtir à vontade, não precisava de me levantar cedo, havia dinheiro no bolso e droga com fartura, porém, tinha uma regra: – nada de heroína. Os da geração anterior à minha estavam todos agarrados e eu não queria isso para mim, mas aconteceu algo que veio mudar tudo isso.

Fui para o serviço militar obrigatório, durante a recruta fui selecionado para a revista ao cacifo, encontraram um pedaço de haxixe. Passados uns dias tive de ir falar com o oficial que estava a tratar do assunto, no final do juramento de bandeira fui preso 10 dias, eliminado do curso e posteriormente julgado em tribunal civil, isso criou em mim uma raiva desmedida, quebrei todas as barreiras comecei a consumir heroína e cocaína e quando dei por mim pesava pouco mais que 50kgs. O comandante da unidade falou com o capelão e fui com ele às Taipas em Lisboa (o primeiro centro de atendimento a toxicodependentes), tudo aquilo me pareceu estranho a conversa do psiquiatra a prescrição obrigatória, acabei por sair da tropa com junta médica.

Em casa começaram a insistir que devia ir fazer um tratamento, falaram do Desafio Jovem e eu a fugir ao assunto, afinal ainda me conseguia orientar.  Em 88 acedi em fazer o programa, entrei em fevereiro, mas perante a dimensão do problema e a minha incapacidade de o enfrentar vim embora no outro dia, fui direito ao Casal Ventoso, vendi as coisas que tinha levado para o centro, consumi e fui à boleia para casa. Ainda aguentei uns tempos, mas foi sol de pouca dura como diz o povo, fiz do furto uma forma regular de vida para sustentar o vício, fui julgado várias vezes, sentenciado com 4 anos de pena suspensa e com alguns processos pendentes, pensei tentar de novo entrar no programa do Desafio jovem, foi tudo mais difícil. Após vários meses no Café Convívio finalmente entrei na Comunidade Terapêutica no Lourel, dia 11 de setembro de 1991, seguiram-se dias dolorosos mas as saídas eram poucas a solução era aguentar, quando comecei a sentir-me capaz comecei a questionar a razão das tarefas e porque me tocava sempre “obras” mas durante um tempo devocional em que desafiava Deus a revelar-se e a mim mesmo para perceber o caminho a seguir, li um texto que falava de cansados, oprimidos e eu estava assim, o texto prometia alívio, existia também uma proposta de aprendizagem a ser manso e humilde e encontraria descanso, naquele momento tive a impressão que seria uma tarefa impossível mas estava disposto a tentar, estava farto de caminhar sem saber se fugia ou se procurava. Os dias foram passando e fui redescobrindo a vida, dei por mim a ouvir os pássaros a cantar e pensei que há tanto tempo não os conseguia ouvir.

Fui para Fanhões para continuar o programa, tantas são as memórias desse tempo, mas lembro-me principalmente dos companheiros a lutar as mesmas lutas a tentar encontrar caminhos onde somente se viam atalhos e juntos íamos partilhando respostas e confessando alguns insucessos. Jesus Cristo deixou de ser alguém distante e se tornou o amigo fiel de todos os momentos.

Lembro-me das aulas em que aprendi exemplos práticos da aplicação da palavra para áreas específicas da minha vida: – “Aquele que roubava não roube mais antes trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom para ter com que repartir com o necessitado…”

Guardo no meu coração aquela conferência em que o pregador de forma inflamada dizia: – “Aquele que vencer, dar-lhe-ei a coroa da vida” e de ser cantado a uma só voz: – “A Deus toda a glória (…) aquilo que sou e aquilo que quero ser pertence a Ti”. Foi com esta convicção que terminei o programa, saí no dia 2 de novembro 1992, consciente que a verdadeira luta estava a começar e que era portador deste testemunho e iria partilhá-lo como estafeta da vida.

Trabalhei em várias áreas para ganhar o meu sustento, mas nunca esqueci o objetivo principal da minha existência, tenho estado ligado ao Café Convívo do Fogueteiro desde que sai do programa. Posteriormente, este foi convertido em Associação para ser mais abrangente na sua ação no serviço à comunidade em que estamos inseridos.

Também é com uma enorme satisfação que vejo a minha família envolvida neste trabalho, servindo o próximo.